A fábula das almas honestas

almahonestaVou contar hoje a história de uma pequena cidade, que fica num país qualquer, num continente qualquer, e habitada por cidadãos de um tipo que certamente existe em qualquer, qualquer lugar do mundo.

Pois bem; nessa cidade vivia uma família — a mãe viúva, duas filhas e dois filhos. Gente simples, sem muita cultura, mas de muita fé. As filhas, “moças decentes”, como disse o pai, orgulhosamente ao morrer, “viviam da casa ao trabalho, do trabalho à igreja, da igreja à casa”. A igreja poderia ser uma igreja qualquer, de uma religião qualquer, porque certamente existe uma do mesmo tipo em qualquer, qualquer lugar do mundo.

Os filhos homens ajudavam num pequeno negócio, mercearia, onde vendiam as hortaliças que ajudavam a mãe a plantar.

O boato se espalhava pela cidade, mas… “Gente faladeira, vão procurar trabalho em vez de ficar falando mal dos outros”, dizia a mãe.

Passa o tempo que passa, uma das moças, gordinha, começou a se enfeitar e mais se enfeitar, pintando os beiços, gastando o pouco dinheiro em roupas e mais roupas, engordando, engordando, a boataria crescendo, e a Viúva reclamando: “Gente faladeira, vão procurar trabalho em vez de ficar falando mal dos outros, não estão vendo que a moça se enfeita só para sua reza ter mais efeito?”

Um dos filhos começou a fazer amizade com pessoas de outras cidades, e os amigos saíam da mercearia carregados de produtos, sem pagar tostão. A paga era oferecer viagens e mais viagens ao amigo bondoso, o outro filho reclamando, “Mãe, meu irmão não planta, não faz nada, só vive de viagem para cá, viagem para lá, e só ele ganha dinheiro?”

A boataria se espalhando, o dinheiro minguando, e a Viúva dizendo: “Gente faladeira, vão procurar trabalho em vez de ficar falando mal dos outros, não estão vendo que o menino ganha o seu dinheiro honesto fazendo palestras para ensinar a plantar?”

Passa o tempo que passa, a mercearia indo à falência, a produção minguando, o povo espalhando boataria, a moça engordando, um dos filhos cada vez mais bem vestido, o religioso abençoando e ajudando a mãe a dizer: “Gente faladeira, vão procurar trabalho em vez de ficar falando mal dos outros”.

Até que um dia, durante uma solenidade religiosa, ouviu-se um grito e um choro de criança. A Viúva e o religioso postaram-se de joelhos: “Milagre, milagre…”, e trataram a criança como enviado dos céus.

Passa o tempo que passa, a Viúva faliu, um dos filhos, o que ficou rico, disse que enriqueceu porque era “protegido dos deuses”, e foi fazer mais uma viagem. O outro filho ficou na miséria, uma das moças foi morar na igreja, a mãe trabalhando dia e noite para pagar as dívidas da família, o povo cansou e parou de espalhar boataria. Afinal, quem pode ir contra pessoas que foram abençoadas por milagres, que se dizem “as mais honestas almas que já existiram neste mundo de meu Deus”?

Ah, mas o santo padroeiro da cidade resolveu acabar com a farra, chamou o Diabo para testemunha e o caolho contou toda a vergonheira. O filho rico bem que tentou ajudar o capeta, mas o plano não deu certo. Os amigos que foram privilegiados pelo roubo não conseguiram realizar a fuga e o Diabo ficou preso, presinho na cadeia, e não teve alternativa a não ser contar a história toda, crente que poderia voltar para seu inferninho particular que ficava num apartamento grã-fino que os amigos do filho ladrão tinham lhe dado de presente.

Ah, querem saber a moral da história?

Simples… Não há Viúva que aguente tanta gente roubando o dinheiro que vem da produção dos filhos honestos, e que custam muito suor e sacrifício. Não há moça que se arrume tanto só para que sua reza seja mais eficaz, não há filho que enriqueça de uma hora para outra só ensinando o que não sabe fazer. E, finalmente, quando o povo espalha um boato, basta ter um pouco de paciência para ouvir o choro da criança, o protegido de Deus. 

 

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