Karoshi

— Como assim? Contrato psicológico? Psicológico?

Foi difícil acreditar quando me informaram isto num Seminário de Gestão da Qualidade em Osaka.

Sim, muitas empresas, grandes empresas, não tinham contratos escritos com seus empregados. O contrato era verbal… ”psicológico”, foi o que disse o sociólogo que nos ministrava a palestra.

Deve ser propaganda, pensei. Seria possível que as pessoas fizessem suas tarefas, não faltassem ao trabalho, cumprissem seus horários sem nada que os obrigasse formalmente? Para mim, aquilo era pura fantasia. Embora eu nunca tenha conseguido checar a veracidade daquela informação, obviamente a dedicação excessiva que eu via ali não era apenas uma questão de papel assinado.

Daquele momento em diante, a questão do “contrato” passou a ser minha pergunta favorita nas aulas. E obtive inúmeras vezes a confirmação.

Na continuação do treinamento, fui entendendo por que o trabalhador japonês tem uma dedicação absurda à empresa onde trabalha. Claro está que a concorrência exerce um papel importante no nível de envolvimento com o trabalho, mas o que me intrigava era, que tipo de controle poderia ser aplicado sem o famoso “vale o que está escrito”?

A ficha caiu quando assisti ao vídeo da cerimônia de recepção a novos empregados numa importante empresa do setor automotivo. Daí, fui pesquisar como se dava o processo de recrutamento e seleção naquela empresa.

Mais espanto…  Quase ao final do ano letivo, as empresas convidavam os formandos com melhor desempenho a visitar suas fábricas. Eram recebidos com pompa e circunstância, ciceroneados por experts em marketing interno, percorriam todas as áreas sempre recepcionados pelos chefes, e ao final recebiam uma cartinha em tom quase ingênuo, que lhes dizia que grande honra seria ter a empresa escolhida pela criatura visitante.

Pronto! Estava aí o segredo, segundo os mestres a quem apresentei minha dúvida. Sim, a empresa não escolhia, quem escolhia era o empregado… esta seria a característica do contrato. A leitura que se fazia nesse momento era daquela palavrinha mágica: “comprometimento”.  Segundo eles, quem está comprometido não precisa assinar papel para comprovar isto.

Mas a sessão surpresa continuaria.

O primeiro dia de trabalho era festa, uma cerimônia de boas vindas, praticamente uma festa familiar. Com o presidente da empresa sempre presente para receber os “kaishain” (novos empregados), em algumas empresas os próprios pais “entregavam” seus filhos ao “shachou” (presidente). A companhia passaria a ser a nova família daquela criatura… e, para que isto se desse em plena harmonia, novamente percorriam toda a empresa, agora já em fase de treinamento, recebendo instruções detalhadas sobre suas tarefas e temas inimagináveis como, por exemplo, atender um telefonema, ou entregar um cartão de visita, considerado ato da maior importância para mostrar status e também consideração por quem está sendo apresentado.

Como assim? A empresa era a nova família? Pois é, amigos, é isso mesmo. Só que nesta nova família, as discussões, as dissidências, ficavam todas disfarçadas, impregnadas do senso de cumprimento do dever expressado da maneira mais absurda que já vi. Nessa família, DR nem pensar…

Bizarro, diria você, mas dava certo.

É, deu certo, e durante muito tempo o Japão foi referência de padrão de qualidade no processo produtivo. O processo era incrível, mas a gestão de pessoas…

É, dava certo. Dava certo se não fossemos constatar a quantidade de trabalhadores que trabalhavam 60 horas extras, pessoas que saíam do trabalho às sextas-feiras e iam beber no bar da esquina. Dava certo se não se medisse o nível de estresse emocional que se acumulava a cada ano.

Lá pelos anos 1990, os trabalhadores dedicados eram chamados de “guerreiros corporativos”; deviam querer incorporar os samurais do passado e viver sua glória.

Bom, faz tanto tempo que participei desses acontecimentos que os fatos já estavam quase apagados da minha memória, quando, assistindo a um telejornal, ouço a palavra maldita — “karoshi”. Dizia a reportagem que o governo japonês está muito preocupado com os karoshi.

Significado de karoshi?  Pessoas que se matam de tanto trabalhar. Neste “se matam”, você pode ler nas entrelinhas: se suicidam, por não aguentarem a pressão do trabalho, o estresse, a saúde comprometida…

E eu pensando que isso era coisa do passado…

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