Uma questão a considerar

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— Te incomoda construir a vida de outra pessoa, ao seu bel prazer?…” — a pergunta foi direta e rasteira.

E diante da minha expressão de surpresa, a pessoa esclareceu:

— Mesmo que a outra pessoa seja somente um personagem?

Uma questão a considerar… Aparentemente um absurdo, que não havia me ocorrido antes, talvez porque escrever para mim seja quase que um reflexo, tão leve, tão natural, que não demanda maiores reflexões sobre o ato em si.

Meu pensamento transita em outra esfera. Fatos ou histórias como as que eu conto, as que outros escritores contam, podem estar, ao mesmo tempo em que escrevemos, acontecendo por aí. A consciência disso sempre me trouxe uma séria preocupação: tenho que empregar toda a minha sensibilidade no enredo que crio para não fugir da raia, concentrar todo meu esforço em deixar que o personagem diga ou que eu não diria, tenha comportamentos e atitudes que eu jamais teria, sem medo, moralismo ou preconceito, reunir a necessária força para desnudar os sentimentos daquele que está sendo criado. Afinal, a proposta é que o personagem convença o leitor.

A noção de que um personagem pode estar reeditando histórias, de que alguém possa estar vivendo (ou sofrendo) situações parecidas com a que estou descrevendo, me transporta a uma postura de humildade, à necessidade total de abrir mão de qualquer pretensão, vaidade ou crítica, para entender meu personagem e subscrever seus atos como ele próprio faria.

Certa vez, um amigo me disse que, durante a criação de um personagem, ele se sente Deus. Eu contestei:

— Pois eu, sinto a maternidade.

— Então você é MÃE dos seus personagens? — ele debochou.

— Não. É diferente de ser mãe. A mãe aceita o filho como ele é, ou como ele consegue ser. A sensação de maternidade em relação ao personagem é mesmo só a de parir. O filho é como é, a mãe tenta fazê-lo mudar, mas sabe que não vai conseguir mudá-lo, a menos que ele mesmo queira. Já o personagem será quem seu autor quiser. A mãe vai tentar passar valores para o filho, fazer dele uma pessoa “de bem”, ou seja, socialmente aceita. O personagem não precisa ser uma pessoa “do bem”, só precisa estar de bem com a trama, ocupar o justo espaço na história.

Ao construir um personagem, para aceitá-lo, tenho que “esquecer”, por assim dizer, quem eu sou ou quem eu gosto de ser; tenho que criar e entender suas motivações para que o texto não se torne apenas um blablablá inconsequente. Ao mesmo tempo, é extremamente necessário exercitar a tolerância e a aceitação do outro, que é o que se faz quando se cria, por exemplo, um personagem que não seja politicamente correto, ou imoral, desonesto, um assassino…

Não posso negar que há ocasiões em que o texto me pesa nos ombros, e quando termino de escrevê-lo sinto como se tivesse descarregado caminhões. É sofrido ter que escrever coisas que normalmente as pessoas não ousam dizer, mas um personagem não se sustenta nas entrelinhas.

Para mim, é o único espaço de absoluta liberdade.

A liberdade é prato que não se come: se olha no meio dele, se observa, se avalia, se pesa os prós e contras, para então embarcar, ou não, em situações da vida. Não é assim? A cada escolha, temos que medir o que ganhamos, o que perdemos, até porque, muitas vezes, não somos os únicos privilegiados ou prejudicados com nossa escolha.

Acho que é por esta razão que adoro escrever. Eu amo a liberdade.

 

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