A língua do povo

daisy19novDe vez em quando gosto de sair da minha “zona de conforto”. Deixo o carro em casa, esqueço que existe táxi e lembro que existe ônibus, metrô, BRT. Como eu me amo, evito os horários de grande fluxo, porque em horários de pico sei que o bicho pega, e eu teria que sair disputando lugar.

Andar em transporte coletivo, para mim, é uma forma de ouvir a voz das ruas, sair do encastelamento e conhecer o sentimento das pessoas mais humildes, aquelas que não têm o privilégio de ter um carro ou de poder usá-lo para trabalhar. Só isso já mostra o absurdo: em outras partes do mundo (mesmo aqui, no Brasil) até as pessoas mais abonadas usam transporte coletivo. No Rio de Janeiro, não.

Algumas pessoas amigas, que sei que têm alma boa e espírito democrático, entendem essa minha atitude como excentricidade. Não é. Não estou querendo me fazer de importante, claro que converso com pessoas que não tiveram e não têm as mesmas oportunidades que eu tive e tenho, mas isto não me basta. Quero ouvir a conversa espontânea, as críticas, os lamentos, as alegrias do meu povo.

Pois bem, na semana passada, num BRT, ouvi um papo muito interessante entre dois homens e uma mulher. A mulher declarou que trabalhava como faxineira num escritório, eram quatro da tarde e ia para o trabalho. Um dos homens era garçom, e o outro não declarou profissão. Despertei para o assunto deles quando ouvi o garçom dizer: “Vai ser muito difícil sairmos desta crise, porque o superávit primário (…)”.

Superávit primário? Aí comecei a bisbilhotar a conversa.

O garçom começou a explicar para os outros dois o que era o superávit primário, “o que se economiza nos gastos públicos para pagar os juros”, e por que seria difícil alcançar a meta de 1,9% que o governo havia estabelecido. “O FMI já disse que isso se deve ao ritmo da economia ter sido menor do que o esperado”.

A mulher respondeu: “Ainda bem que eu tenho emprego e que eles precisam de mim lá, ninguém sabe fazer nada além de ficar no computador”.

Disse o terceiro participante: “É, dona, mas quem não tem emprego como eu está ferrado, tô me segurando com o salário-desemprego, mas já ouvi falar que vão tirar”.

O garçom: “É, o governo decidiu cortar R$3 bilhões do seguro-desemprego e do abono salarial para evitar fraudes, mas não deu maiores explicações”.

“Mas que fraude um desempregado poderia cometer, se só pode receber 1 salário-desemprego?”, perguntou o desempregado.

“Simples, o senhor poderia voltar ao trabalho e continuar se dizendo desempregado. Aí ficaria acumulando dois benefícios. Muita gente faz isso.”

“Ah, mas acumular Bolsa Família pode?”

“Isso eu não sei lhe dizer, nunca me interessei por esse tipo de benefício, sempre preferi ir à luta.”

Disse a mulher: “Mas a Bolsa é legal, uma porção de vizinhas minhas recebe”.

Perguntou o garçom: “E elas trabalham?”

“Claro que não.”

“E fazem o quê?”

Disse o que se declarou desempregado: “Se fossem homens eu diria que ficam coçando o saco, mas como são mulheres, ficam apenas mamando nas tetas do governo”.        “Concordo”, disse o garçom. “As pessoas se acostumam, e não se estimulam para conquistar outro patamar na vida. Enquanto isso, não há ensino decente, salário mínimo decente, e…”

A mulher interrompeu: “Meu filho estuda em escola particular, porque…”

O garçom: “Meus dois filhos também, um já faz faculdade”.

O outro homem ia dizer qualquer coisa, mas o garçom se despediu: “Está chegando a minha estação, até mais”.

Fiquei encafifada com aquele garçom que sabia o que era superávit primário e que ensinou algumas outras noções de economia que eu não contei aqui, para não prolongar o assunto. E ele nem usou vocabulário economês…

Naquela altura, a minha estação já havia passado, eu tinha me perdido na bisbilhotice. Saltei atrás do garçom e não resisti, perguntei como ele entendia tanto de economia.

“Porque fui economista.”

“Foi? Não, você é! Ninguém deixa de ser economista!”

“Depois de ficar dois anos desempregado, de vender seu apartamento no Flamengo para pagar dívidas e os estudos dos filhos, depois de fazer cursinho no Senac para ser um bom garçom, deixa, sim. Eu às vezes penso que nunca fui economista.”

O que eu poderia dizer? Apenas estendi a mão para ele e lhe desejei boa sorte.

É… a língua do povo é ferina, e quando pode ser espontânea, conta cada verdade…

 

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