Bendito pão nosso de cada dia

daisy25maiBasta zapear um pouco, não só pela TV aberta, mas pelos canais a cabo, e você, em qualquer horário, certamente vai encontrar um programa de gastronomia: doces, salgados, comida regional, enfim, toda sorte de cardápio e de gente com umbigo encostado no fogão. Pilotando-o, homens, mulheres, altos, baixos, gordos, magros, gente de tudo quanto é tipo e nacionalidade. Até crianças.

Confesso que fico encafifada: por que raios todo mundo resolveu se dedicar à incrível arte de alimentar o mundo?

Imediatamente um “macaquinho do meu sótão” me diz, com voz grave e um tom de deboche: “Ah, talvez porque mundo esteja passando tanta fome de tanta coisa…”

Talvez as pessoas estejam querendo ser mais generosas… Não tenho dúvida de que o ato de cozinhar para alimentar o outro seja uma das formas mais generosas de compartilhamento. E sem querer ser “maior” do que os outros, o que eu não ousaria mesmo, com meus 1,58 de altura, tive que reconhecer que existe mesmo FOME.

Aqui não me refiro apenas à fome de comida, porque esta, sabemos nós que se deve à ganância dos poucos que comem, e comem bem — inclusive se alimentam das verbas que poderiam alimentar os que não comem. Sim, esta fome é falta de comida, mas me refiro à fome que é falta de outros tipos de alimentos, como cultura, vergonha, solidariedade, consciência e, por que não, de senso de ridículo.

Diz o “macaquinho do meu sótão” que, em não se podendo ter esses outros alimentos, serve-se gastronomia à vontade.

Pode ser, pode ser. E não é uma questão brasileira apenas.

Vejamos: Donald Trump pode se tornar o próximo presidente da república mais poderosa do mundo; Maduro esgota tudo quanto é recurso da Venezuela, e depois decreta estado de emergência para calar a boca das pessoas; enquanto no Brasil não existem mínimos recursos para o Sistema Unificado de Saúde (SUS), fizemos portos para Cuba, mais não sei o quê para Angola, mais não sei o quê para não sei quem. Só sei que enquanto a indústria no Brasil quebra, soltando estilhaços para todo lado, incluindo 11 milhões de desempregados, o BNDES — sigla que ironicamente quer dizer “Banco NACIONAL para o Desenvolvimento” — dá uma de bonzinho utilizando seus recursos para parceiros que interessam ao governo que está sendo impichado agora. Brasileiro é tão bonzinhoooo…

Também, com esses preços… O quilo do pãozinho francês a R$13… Tome de aprender a fazer musses, e quiches, e vol-au-vent, e comida vegetariana. E nada de aprender a ter vergonha na cara, solidariedade, compaixão, e senso de ridículo.

Em minha mente surge uma recordação de quando a censura estava a todo vapor no golpe de 64. Existia um jornal que os jovens não conheceram, o Correio da Manhã, que substituía a matéria censurada por receitas — só que eram receitas de bolo de fubá, de cozido, enfim, pratos brasileiros que seriam acessíveis a todos.

Sopra o “macaquinho” na minha cabeça: “Estará o mundo reagindo à fome de princípios, à fome de vergonha e de senso de ridículo?”

Não, seria punk demais para o meu gosto. Mas, de qualquer forma, vale o registro, e eu gostaria de saber por que tantos programas ensinam a fazer comida e tão poucos ensinam a fazer cultura, criar consciência, fornecendo às pessoas ferramentas para que identifiquem a verdade que está subjacente aos fatos noticiados.

Se vocês souberem, caros leitores, por favor, me informem, para ver se esse “macaquinho” que zoa em minha sala se cala para sempre.

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