Varanda
Neste clima de tanta insensatez e de tanta incerteza na minha Pátria gentil, mentiras muitas, malfeitos que ainda não foram desfeitos, parece que tudo já foi dito, e redizer não me agrada. Depois da emoção do dia 15, de estar na massa, de ver deputado se mandando do protesto porque entendeu que o povo não estava nada a fim de dar carona à politicagem, prefiro dar um leve pause na crônica e contar um causo. Meio nonsense, mas de qualquer forma, um causo.
O fogo a fascinava. A cor, o bruxulear de suas chamas igual fazem os galhos ao vento, que também queima como o fogo e destrói ele mesmo o que lhe colocam à frente, quando é vento espalhador.
Os gostos a fascinavam: doces, ácidos, amargos. O provar de gostos novos fazia com que recuperasse um sabor já conhecido, como se cada novo gosto lhe trouxesse uma antiga experiência, de vidas já vividas.
As cores a fascinavam. Puras ou misturadas, de tons fortes ou pastéis.
Pastéis… gostava de experimentar novos recheios, como novas cores, como novos gostos. Gostava do fogo; gostava, assim, de cozinhar. Sua comida eram mensagens que enviava às pessoas. Geralmente, mensagens de amor.
Toca o telefone, Era ele!
Bem que ela havia esperado aquele toque por muito tempo, uns dois séculos talvez. Mas isso não era importante agora. Importante era atender.
— Tudo bem?
— Sim.
— Quer jantar comigo?
— Se eu não estiver no menu, quero.
Risos. Silêncio.
— Que menu prefere?
— Strogonoff.
— Por quê?
— Preferência, posso ter?
— Claro.
Silêncio.
— Acompanhamento: batatas, não aquelas de “sofrê”; peça as aflitas. Continuando: sempre gosto de ter opções; embora o strogonoff já apresente duas opções, quero a terceira.
Ele pergunta:
— Duas opções?
— Sim: on e off.
Risos, sem graça alguma; risos de quem não sabe o que vai dizer e precisa ocupar a boca de alguma forma. Ele:
— Tá. E a outra opção?
— Eu faço; adoro cozinhar, você talvez não saiba.
— Gosta?
— Não, adoro!
— Você mesmo faz?
— Sim; mas você compra os ingredientes.
— Claro.
— Anote: vai ser pasta.
Ele, tentando ser engraçado:
— Couro, pano, ou o quê?
— PASTA! Anote: espaguete ou talharim, você escolhe. Para o molho: páprica, cheiro verde, manteiga, massa de tomate é muito importante. Eu disse MASSA, não extrato. A massa é inspiradora. Ah! um pouco de tomilho; aceite cozido, não gosto de cru. Alho, naturalmente. Sálvia, muita. Tomate cru, sem casca. Beringela… Não, esquece. Não, compra; pode ser necessária. Traga também um pouco de pimenta do teu reino. E os ovos. Dois. Aipo, um talo inteiro. Cebola, tudo. Sal é de lei. Eu tenho o cheiro e a panela; minha panela guarda os meus segredos.
Ele:
— A sobreamesa vai ser torta de nós.
— E pudim amargo. Café, eu tenho o coador. Bebida: vinho tinto, e antes, champanhe. Muda a marca; agora gosto de Veuve, a que clicou! Água muita e, por favor, vê se compra taças: 27 taças.
— Só isso?
Ela:
— É o que basta!
Comeram, e o strô lhes fez tanto mal que vomitaram os dois; pararam no off. A pasta ficou lá, olhando pra eles, fechada, intocada. A Veuve se acabou ali mesmo. O pudim azedou, de guardado. A água faltou.
E ela foi pra varanda, olhar a noite. De lá, viu o fogo, sentiu o gosto e viu as cores; todas as que já conhecia, e uma que tinha apenas imaginado.
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