Mereciam até um CPF…

daisy29abrTarde quente, uma chuvinha caindo silenciosa… diazinho bom pra malhar.

Me paramentei, taquei umas calças daquelas que seguram tudo, não apenas os músculos, seguram até a alma. Olha que eu estava bem animada, o que não ocorre normalmente. Pra mim, a ida à academia é quase como ir ao dentista. Sofrimento à parte, o desconforto é o mesmo, só fazendo diferença no odor, substituído aquele horrível cheiro de remédio pelo dos suores que se espalham no ar.

Segui o ritual — alongar, respirar, esteirar, e só depois malhar.

Primeira etapa, ok, alongadíssima. Segunda, haja pulmão, respirei até o pulmão fazer bico. Mas, quando tomei lugar na esteira eu o vi. Sujeitinho esquisito… parecia estar fazendo acrobacia com o celular, ao mesmo tempo em que corria a sei lá quantos por hora, equilibrando-se entre a ação de correr e…

Ai, droga, vou ter que tomar alguma atitude, pensei, quando percebi o que o homem estava fazendo. E tomei. Fui em sua direção e ele, ao me ver quase chegar, continuou sua carreira desabalada, mas fora da esteira. Isso mesmo… ele se mandou!

Eu? Fazer o quê? Aparentemente ninguém tinha visto, eu de solitária testemunha não iria levantar aquela lebre. Acabei minha ginástica, voltei para casa.

Uns dias depois, nem posso precisar quantos, estava eu novamente a esteirar, e meu coração começou a correr mais do que minhas pernas. Pois não é que o sujeito, o tal da acrobacia, vinha direto na minha direção? Tinha qualquer coisa nas mãos, e acenava com aquilo. E parou bem ao meu lado.

Aquilo era uma foto, que eu não conseguia enxergar direito.

Imagine o espanto que eu devia expressar quando ele começou a falar muito rapidamente (e baixinho):

— Olha, quando olhei aquelas coxas não resisti.

Meu Deus! Que coisa era aquela…. Eu não sabia se caía no riso, ou se me horrorizava. Já conheci pessoas que, escravos da forma e de um modelo de beleza adotado, passam horas e horas dentro de uma academia, se lascando para manter o tal padrão que, tenho a impressão, os faz sentir semideuses, semideusas, músculos indestrutíveis. Mas como essas coxas eu nunca tinha visto.

Sacudindo a foto no ar, ele continuou:

— Essas aqui, ó. Eu já observava há dias que a dona dessas coxas ficava malhando horas, botando os bofes pra fora, transpirando como se estivesse morando em pleno inferno. Mas em compensação… o resultado está nesta foto.

E me estendeu a imagem. Olhei, vi umas caras (caras?) Não, umas coxas. Não, mas tinham cara. Puxa, mas eram coxas. Gente… As coxas tinham cara! Não consegui pronunciar uma palavra.

O homem continuou falando mais baixinho ainda… e ainda rapidamente.

— Aí, não aguentei… tive que dar uma cara para essas coxas. Porque identidade elas já tinham. Mereciam até um CPF.

Eu? Mudei de academia, aquela mais parecia um hospício.

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